O problema da corrupção ocorre com a transformação do indivíduo privado em uma autoridade pública que usa o poder em benefício privado.
Muitos séculos antes de Maquiavel ter escrito O Príncipe, em 1513, Chanakya, um mestre do Chandragupta Maurya, fundador do primeiro grande império indiano, entre 320 e 185 a.C., foi autor de um dos primeiros tratados do mundo sobre conquista e manutenção do poder. O Arthashastra, ou “A Ciência da Riqueza”, refere-se à riqueza do Reino – e não das Nações, como está no título do livro pioneiro da economia política de autoria de Adam Smith, publicado em 1776.
Ele é um detalhado estudo sobre administração pública, economia política e Estado. Nele, Chanakya registra que a corrupção era uma praga já conhecida. “Assim como não se pode saber se um peixe está bebendo água de um lago, é impossível saber quando um funcionário do governo está roubando dinheiro.”
À meia-noite de 15 de agosto de 1947, nascia a Índia, horas depois do Paquistão, partição entre hindus e muçulmanos, cujo conflito os britânicos deixaram como a herança maldita de sua colonização. Jawaharlal Nehru, 57 anos, afilhado de Mahatma Gandhi, muito carismático, venceu todas as eleições que disputou. Foi apontado primeiro-ministro em 1951, em 1957 e em 1962, morrendo dois anos depois.
Sua filha, Indira Ghandi, cujo sobrenome não tem relação de parentesco com Mahatma, foi escolhida primeira-ministra em 1966. Em 1984, os separatistas sikhs a assassinaram. Rajiv Gandhi, cuja única credencial política era ser filho de Indira e neto de Nehru, foi o encarregado de manter o nome de sua família no poder. Ele teve apenas sete anos pela frente, morrendo em atentado de uma mulher suicida-bomba que matou 17 pessoas e feriu mais de 50.
Assim como tinha ocorrido com sua mãe e Mahatma Gandhi, foi um assassinato político. O assassino de Gandhi alegou que sua política de não-violência “emasculava” os hindus e os tornavam incapazes de reagir às agressões dos muçulmanos. Gandhi vivenciou apenas seis meses de Índia independente.
A dinastia Nehru-Gandhi se inscreve na tradição hereditária das famílias políticas entrincheiradas em todos os níveis de governo do país. Em geral, os partidos não são democráticos, internamente, pois seus candidatos são escolhidos pelo(s) cacique(s) político(s) entre “índios” inscritos na nomenclatura e não por prévias dentro das legendas. Se um membro do parlamento morre, quem disputa a eleição em seu lugar é algum parente.
O nepotismo é visto mais como uma responsabilidade para com a família do que como uso indevido dos cargos públicos ou como conduta antiética. O argumento contumaz é que “os desejos pessoais são subordinados aos da família”.
Na maior democracia do planeta, os 417 milhões de eleitores indianos que comparecem às urnas para votar, voluntariamente, porque não são obrigados pela lei como no Brasil, tendem a escolher os candidatos com pedigree por causa da forte reverência cultural pela família. Basta verificar, no Congresso, os que se elegeram por causa das conexões hereditárias.
Os indianos privilegiados das castas da elite (classe média) reclamam da corrupção e costumam desdenhar da importância do voto. O povão vota em massa, pois os pobres precisam de um governo que lhes dê benefícios sociais, empregos e mantenha o poder aquisitivo.
Os indianos têm mais frustrações contra a corrupção cotidiana que inferniza as suas vidas e irrita mais do que os grandes escândalos. Os corruptos se justificam dizendo que “nós ajudamos as pessoas que estão com pressa de ganhar algo”.
Os ativistas conquistaram uma poderosa arma contra a corrupção: a Lei pelo Direito à Informação, que obriga a burocracia a prestar contas dentro de certo prazo. Discute-se ainda a repatriação de “dinheiro sujo” depositado no exterior. Combatendo-a, o número de denúncias de corrupção aumenta cada vez mais.
Aumentam as acusações de fraudes em contratos ligados a grandes eventos esportivos, formação de cartéis em licitações públicas, conluios em privatizações de empresas estatais. A Índia também mergulhou em escândalos que paralisaram o governo e congelaram projetos estratégicos de desenvolvimento de infraestrutura.
No Index de Percepção da Corrupção de 2011, a Índia ficou em 95o. lugar (os primeiros da lista são os menos corruptos), piorando seu desempenho em relação ao ano anterior, quando estava em 83º lugar. A Índia está abaixo do Brasil (73º lugar) e da China (75º lugar), mas melhor do que a Rússia (143º lugar).
Os Capitalismos de Estado tendem à corrupção? Por esse ranking, não se pode afirmar que eles estão sozinhos diante dessa praga que assola todos os lugares – e em todos os tempos! O desejo desmedido de enriquecimento familiar parece fazer parte da natureza humana…
A impressão popular é que pessoas que obtêm poder político tendem a usá-lo em benefício próprio. O poder político, mesmo não sendo absoluto, tende a corromper. Este verbo (“corromper”) significa a transformação da personalidade da pessoa alçada à posição de exercer poder sobre os demais cidadãos – que antes desta nomeação eram considerados seus iguais.
O poder político distingue seu detentor como uma pessoa diferente das demais, cercando-a de símbolos, distinções, privilégios e imunidades que sinalizam sua hierarquia superior. Regras de cerimonial regulamentam qual deve ser o comportamento das pessoas inferiores na presença da autoridade.
No entanto, tais deferências referem-se ao cargo e não à pessoa que o ocupa no momento. Nunca deve se esquecer de que ela é um ser humano como qualquer outro. O problema da corrupção ocorre com a transformação do indivíduo privado em uma autoridade pública que usa o poder em benefício privado.
O problema da política pode ser resumido em como uma pessoa (ou um grupo de pessoas) obtém o controle sobre as demais pessoas da sociedade. Os preceitos jurídicos, políticos, religiosos, de sentimento nacional, de sentimento de classe social e de partido político são os principais critérios de tal legitimação sobre a soberania da vontade das outras pessoas da sociedade. Política é ação coletiva. E esta deve tentar o controle da corrupção, vigiando e punindo. Exige-se eterna vigilância externa para incentivar o autocontrole pessoal…
Gazeta de Caaporã
Por Fernando Nogueira*, publicado no Brasil Debate
* Fernando Nogueira é professor livre-docente do IE-Unicamp. Autor de “Brasil dos Bancos” (Edusp, 2012), ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007)